Vesúvio é o vigésimo-quarto disco de Djavan
Há quarenta e tantos anos Djavan faz sambas. Há 16, orquídeas. Os sambas o público os conhece e admira desde sua estreia como compositor, com “Fato consumado”, em 1975. As orquídeas são uma paixão privada que ele trata com esmero de compositor no sítio, incrustado na Mata Atlântica, que mantém na região de Petrópolis e que, entre outras plantas nativas, conta com um imenso jardim – “Profissional!”, como faz questão de frisar – de orquídeas, com 850 plantas, de 360 espécies.
“Orquídea” é o título de um samba de “Vesúvio” (Luanda Records/Sony Music), vigésimo-quarto disco de Djavan, com lançamento no dia 23 de novembro. Une essas duas paixões. Como todos os seus sambas tem aquele estilo próprio, aquele fraseado, o sincopado único que o fazem um dos estilistas da moderna música brasileira. A letra originalíssima cita, com naturalidade, os nomes científicos de pelo menos 15 dessas espécies de orquídeas que ele cultiva, inclusive uma tal Javanica, que ouvida assim na canção lembra o nome do compositor. O que não deixa de ter um pouco de verdade: Djavan é hoje tanto descobridor de melodias como de flores, às duas, dispensa a mesma devoção. Canções e flores djavânicas, não é nenhum absurdo dizer do criador do verbo “caetanear” (que Caetano retribuiu com outro neologismo, “djavanear”), na canção “Sina”.
Em comum com várias das outras canções do disco há a recorrência das metáforas e imagens da natureza, do poder avassalador da natureza, expressa na própria canção-título, “Vesúvio”: “Todo mar tem onda/Você tem um poder/Que me lembra o Vesúvio/O sol é de ouro/Que na foz do prazer/Me transforma em dilúvio”, a riqueza das rimas, a exuberância das imagens, os elementos da natureza anunciando um disco solar em contraste com o momento difícil, tenso que estamos vivendo. Na verdade, o samba é uma exceção em “Vesúvio”. Trata-se, numa definição simples, inequívoca, de um disco pop.
– Estou sempre buscando novas motivações e para mim pareceu um desafio imenso fazer música pop neste momento, eu que normalmente em meus discos invisto na diversificação _ afirma Djavan. _ E quis fazer um disco pop também pelo momento em que estamos vivendo, nebuloso, de tanta incerteza no país e no mundo. Queria que a minha mensagem musical chegasse com mais facilidade, com mais fluidez, cristalina.
E é isso mesmo o que acontece na maior parte das 13 músicas do disco: são canções pop. O que, no entanto, não deixam por isso de conter muitos detalhes e sutilezas. Em “Vesúvio” mesmo, por exemplo, já aparecem as duas principais influências musicais não brasileiras de Djavan e que tem a ver com sua ancestralidade: o violão flamenco executado por Torcuato Mariano já desde a introdução, e o ritmo africano, tribal, coisas que ele busca desde que começou a ir a Espanha e África (mais especificamente, Angola), nos anos 80, e que aqui está traduzido neste ritmo levado por uma bateria só de tom-tom e bumbo, executada por Felipe Alves.
Num raro movimento em sua carreira, e muito devido ao tal “momento de incerteza” no Brasil e no mundo, com guerras lá fora e crise aqui dentro, Djavan fez canções com um discurso político explícito. Como o título indica, ele compôs “Solitude” num momento de reflexão e de íntima perplexidade. Ou como diz de forma tão cristalina a letra da canção: “Vidas fardos/Meros dados/Incontáveis casos/De desamor/Quanta dor/Muita dor/Quem é que sabe/O quanto lhe cabe/Dessa solitude?/Por isso a hora/De fazer é agora/Tome uma atitude”.
Ainda nessa linha de denunciar a nossa passiva perplexidade cotidiana, o letrista Djavan continua uma cara tradição da poesia que é tentar traduzir em versos a irracionalidade das guerras. Se um poeta como Paul Valéry dizia, na época da Primeira Guerra Mundial, que “tanto horror não teria sido possível sem tanta virtude: sem dúvida, foi preciso muita ciência para matar tantos homens, dissipar tantos bens, aniquilar tantas cidades em tão pouco tempo”. Agora, em “Solitude”, diante das guerras de hoje Djavan volta ao tema ainda mais conciso e preciso e define: “Guerra vende armas/Mantém cargos/Destrói sonhos/Tudo de uma vez”.
Musicalmente, “Solitude” tem uma primeira parte muito simples, uma melodia pop, quase um mantra, que evolui para uma segunda parte com uma construção harmônica complexa e original, típica das composições de Djavan. Como sempre em seu processo criativo, a melodia nasceu antes, foi arranjada e gravada para valer e só depois de pronta recebeu letra, como aliás aconteceu com todas as canções do disco. A música flagrou o poeta tenso com o que via do mundo, o que fez com que até a matéria-prima de suas canções, de quase todas as canções, parecesse ter menos valor e gerasse o achado poético que abre “Solitude”: “Amor em queda/Mesmo tal moeda/Perde cotação”, o amor aí tratado com a frieza do noticiário da crise econômica, mas com o absurdo da situação denunciado de forma sutil no segundo verso (“mesmo tal moeda”), a poesia ressaltando o absurdo contido na notícia fria (não fosse esse estranhamento a função mesma da poesia, não é?).
Outra canção explicitamente pop e política do disco é “Viver é dever”, um rock com letra seca e direta, como pede o gênero também raro em sua obra: “Tudo vai mal/Muito sal/Nada vai bem/Pra ninguém/Nessa pressão/Quem há de dar a mão/Pra que o mundo/Saia lá do fundo/Pra respirar/E não morrer?”. E sem abrir mão das referências grandiosas à natureza: “A paixão é o sol/Que se espalha no ar…”. Assim como o funk suingadíssimo “Cedo ou tarde”, um retrato de uma atualidade marcada pelo medo, numa definição impressionante: “Quem manda é o medo/A hora é imprópria/Pra sorrir/Viver assim/Com tais dissabores/Não é brincadeira”.
Pop e prenhe de sutilezas são canções como “Dores gris”, com sua letra também cheia de imagens de natureza e cores (gris) tão djavânicas para traduzir o (des)amor: “O vento austral/Sopra longitudinal/As melenas da nau-solidão/E as dores gris”. E a lindíssima balada do disco, a confessional “Tenho medo de ficar só”, uma das maiores homenagens ao amor na história da canção brasileira, vejam a letra desbragada, que insiste, bem no espírito de “Vesúvio”, nas metáforas de natureza, de flor: “Amar me faz superior/Tudo queda aos meus pés/Tudo me é possível/Ou crível/Esqueço os demais/Simples mortais/Só me interessa o amor/Alguém pra cultivar/Uma vida em flor”.
“Meu romance” é uma canção sobre o amor real, realizado, em forma de um popíssimo bolero espanhol, que recebeu inclusive uma versão quase literal em espanhol, intitulada “Esplendor”, do compositor uruguaio Jorge Drexler. A versão será lançada mundialmente, com direito a dueto com Drexler, a primeira vez, aliás, que Djavan divide os vocais de uma canção num disco de estúdio próprio desde que Cássia Eller cantou com ele “Milagreiro”, em 2001.
Enquanto uma outra forma de amor – o que não aconteceu – “Um quase amor” tem uma das letras mais inusitadas do disco (“Você me pede pra manter segredo/Sobre o que não aconteceu/Que eu nada tente dizer/Do que não houve/Entre você e eu/Jogando luzes/Sobre os mínimos detalhes/De algo que não se confirmou”) e talvez seja a canção mais chique, vestida pelo vibrafone jazzístico de Jota Moraes. Djavan estava com saudade desse vibrafone de pianista, no estilo do americano Milt Jackson, que apareceu já em seu segundo disco, no solo do próprio Jota Moraes em “Nereci”.
“Mãos dadas” é um shuffle, aquela dança, variante do funk mas levíssima, já explorada por compositores como o seu velho parceiro Stevie Wonder em “Isn’t she lovely” – com direito a uma homenagem a ele, aliás, no improviso vocal que Djavan faz. A letra, seguindo a leveza da música, é totalmente direta: “Agi assim/Porque não tolero gente ruim…”.
Apesar de ter letra tão típica de “Vesúvio”, com grandiosos versos inspirados na violência da natureza (“És minha, eu sei/Abrir-se um céu azul/Em meio à tempestade/Glacial/É normal, porque és minha”) e até nome de flor, “Madressilva” é uma exceção em termos formais: com sua melodia densa e sua estrutura harmônica parece uma peça clássica, num contraste com o espírito do disco. Djavan a compôs para isso mesmo, ser um respiro na atmosfera geral do trabalho.
Para conseguir a sonoridade que desejava, Djavan apresenta uma nova banda composta por velhos companheiros como o guitarrista Torcuato Mariano e os pianistas Paulo Calasans e Renato Fonseca, e dois músicos novos, justamente o baixista, Arthur de Palla, e o baterista, Felipe Alves, uma cozinha com um suingue ainda mais pop para a sua nova safra de canções. É este grupo que o acompanha em toda as canções do disco que deve segui-lo na turnê mundial que se inicia ano que vem. Com essa grande leva de canções novinhas, compostas especialmente para “Vesúvio”, Djavan não ouviu poucas vezes um “pra que isso”, um “por que tantas canções novas”?
– Comecei isso há 40 anos, meu papel é fazer canções – diz o criador, seja de melodias ou flores.
Ou, coerentemente como diz em “Solitude”: “parece tarde/Falar de amizade/Ver com o coração”. Mas mesmo assim Djavan resolveu não ficar parado. Foi lá e fez novas canções, ou seja, viu com o coração. Tomou uma atitude, como diz a própria canção.