Para muitas mães, a hora das refeições é a verdadeira hora do pesadelo. Não importa o tempo dedicado para tentar tornar a comida mais apetitosa e bonita (seja desenhando carinhas com arroz e feijão ou disfarçando as verduras no meio de hambúrgueres). A resposta de algumas crianças é sempre um sonoro ‘não’ seguido de uma cara emburrada e chorosa. E é aí que começa o teste de paciência. Sem forças para lutar após desgastadas e frustradas tentativas, muitos pais amolecem e acabam cedendo à resistência dos pequenos.
Geralmente, esse problema tem início a partir dos dois anos de idade, que é quando a criança já desenvolve uma certa autonomia ao passar da alimentação infantil (papinhas e mamadeira) para um formato mais adulto, com a inclusão de alimentos sólidos. Essa mudança faz com que os pais estranhem a criança, que antes ‘comia de tudo’, e depois passa a rejeitar qualquer tipo de alimento. Nesta entrevista, o médico Mário C. Vieira — que é coordenador da residência médica em gastroenterologia pediátrica do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, e professor do Departamento de Pediatria da PUCPR — ajuda a elucidar a questão: como lidar com uma criança que possui dificuldades em se alimentar?
Dr. Mário, que é membro do Departamento Científico de Gastroenterologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, explica que os hábitos alimentares dos pais exercem papel fundamental na criação dos filhos. E faz um alerta: “Pode-se brincar com o alimento, mas não com a alimentação. Isto é, não distrair, não enganar, não forçar, não castigar ou premiar”. Portanto, o outrora didático “aviãozinho” deve ser aposentado. Por outro lado, estão liberadas preparações criativas, como apresentar pratos coloridos, fazer carinhas com a comida e oferecer o alimento rejeitado pelo menos dez vezes, em refeições e com modos de preparo diferentes (cozido, frito, assado, purê).
Revista News — O que é, de fato, uma alimentação saudável?
Dr. Mário C. Vieira — Uma alimentação equilibrada e balanceada deve incluir verduras, frutas e legumes na rotina diária. Nutrientes como ferro, zinco e vitaminas precisam fazer parte do nosso dia a dia. Devemos nos alimentar em intervalos de três ou quatro horas. O ideal é que façamos no mínimo cinco refeições por dia (café da manhã, almoço, jantar e dois lanches nos intervalos). Além disso, as refeições devem ser feitas em horários e locais adequados. Precisamos nos concentrar na atividade da refeição, sentir o sabor dos alimentos e entender a sensação de fome e de saciedade. Com uma distração, que pode ser a TV, come-se automaticamente ou apressadamente. Às vezes, pode-se comer mais do que o suficiente para saciar a fome ou menos que o necessário para garantir o suprimento adequado de nutrientes.
Revista News — Por que o famoso e muito utilizado “aviãozinho” deve ser aposentado?
Dr. Mário C. Vieira — O famoso aviãozinho está fora de cogitação, pois é uma maneira de enganar, distrair a criança. A criança precisa se concentrar na atividade da refeição, sentir o sabor dos alimentos e entender a sensação de fome e de saciedade. Com uma distração, que pode ser a TV também, a criança, e qualquer pessoa, come automaticamente. Às vezes, pode comer mais do que o suficiente para saciar sua fome. Brincar com o alimento, mas não brincar com a alimentação. Isto é, não distrair, não enganar, não forçar, não castigar ou premiar.
Revista News — A alimentação de uma criança tem que ser diferente da alimentação de um adulto?
Dr. Mário C. Vieira — Tudo depende da fase em que a criança se encontra. Entre um e dois anos a Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que a amamentação seja mantida, mas que as refeições principais devam ser semelhantes às dos adultos. Não há restrições. Nessa faixa de idade, os hábitos alimentares adquiridos mantêm-se até a vida adulta, portanto, é importante prestar atenção no consumo de alimentos artificiais (balas, refrigerantes e biscoitos recheados), que contêm corantes, excesso de sal ou açúcar. O leite e seus derivados, como iogurtes e queijos, fontes de cálcio, são importantes para o desenvolvimento infantil. Por outro lado, o consumo excessivo de leite, além de não suprir todos os nutrientes necessários para um crescimento saudável, interfere na aceitação de outros alimentos e pode influenciar no desenvolvimento de anemia por deficiência de ferro. As refeições devem ser realizadas à mesa ou em cadeira própria para a criança, juntamente com a família, em ambiente calmo e agradável, sem televisão ligada ou outro tipo de distração.
Revista News — Qual a influência dos hábitos alimentares dos pais sobre a alimentação dos filhos?
Dr. Mário C. Vieira — A família é o principal modelo para a criança. Se as refeições não são feitas à mesa, se os pais e os irmãos mais velhos só comem lanches, não incluem em sua alimentação frutas, verduras e legumes, dificilmente a criança vai gostar desses alimentos. Outros fatores podem influenciar o comportamento alimentar e alguns deles são referentes à própria da criança. Aquela que é muito agitada e ativa, por exemplo, raramente demonstra sinais de fome ou interesse na alimentação. Outras podem ter tido uma experiência traumática, desagradável com o alimento (engasgo, dieta por sonda, etc) e desenvolvem verdadeiro medo da comida. Já algumas crianças podem ter baixo apetite por conta de alguma doença orgânica, principalmente problemas relacionados ao trato digestório. As crianças cujos pais têm dificuldades em impor limites na educação de seus filhos têm maior chance de apresentarem dificuldades alimentares.
Revista News — Como lidar com as crianças que não comem ou comem só alimentos pouco saudáveis?
Dr. Mário C. Vieira — Aos pais cabe impor limites aos filhos: horários para as refeições, locais apropriados, ritmo de alimentação sem exageros na duração (no máximo 30 minutos). Apresentar, por exemplo, pratos coloridos, fazer desenhos com a comida, tentar oferecer o alimento rejeitado ao menos dez vezes em preparações diferentes (cozido, frito, assado e purê) também são válidos. Brincar com o alimento, mas não brincar com a alimentação. Isto é, não distrair, não enganar, não forçar, não castigar ou premiar. Um hambúrguer, por exemplo, não faz mal, o importante é não haver exageros. Na hora de comer o sanduíche, aposte numa salada junto e troque o refrigerante por um suco de fruta.
Revista News — Como garantir uma alimentação adequada e saudável?
Dr. Mário C. Vieira — Sem dúvida o modelo familiar é fundamental. E os pais precisam ter paciência, não desistir de oferecer novos alimentos à criança, mas também respeitar suas preferências.
Revista News — Quais as consequências de uma alimentação desregrada?
Dr. Mário C. Vieira — A seletividade é uma fase normal do desenvolvimento infantil. Porém, é uma fase que tende a passar. Mas as crianças que adotam esse comportamento de maneira exacerbada podem apresentar baixo peso, falta de atenção, desenvolvimento lento no aprendizado, deficiência de nutrientes como ferro, vitaminas e sais minerais, fatores que prejudicam a formação física e psicológica da criança. Excessos na infância estão relacionados com o desenvolvimento de doenças crônicas anos mais tarde, como a obesidade, por exemplo. Carências, por outro lado, levam ao déficit de crescimento e anemias, que se não tratadas a tempo, podem causar danos irreversíveis.
Revista News — Insistir faz com que eles, vencidos pelo cansaço, comam melhor?
Dr. Mário C. Vieira — É muito difícil que isso aconteça, é bem mais provável que os pais se cansem e cedam às exigências dos pequenos. Castigar, bem como premiar, não é uma boa estratégia. Uma alimentação adequada constrói-se com paciência e bons exemplos. A mesa não pode se tornar um campo de batalha familiar, um local para resolver desavenças.
Revista News — Como diferenciar birra infantil de um quadro que necessita de tratamento profissional?
Dr. Mário C. Vieira — A partir do momento que os pais observam um comportamento de rejeição aos alimentos devem conversar com o pediatra. A recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria, inclusive, é que o mesmo médico acompanhe a criança do nascimento à adolescência. O médico é quem vai avaliar a gravidade do quadro, pois pode ser o sinal de problemas mais graves. A repulsa por certos tipos de alimentos, ou o total desinteresse pelas refeições, acaba causando angústias e conflitos no cotidiano familiar. Por isso, o pediatra deve ter uma visão multidisciplinar, fazer uma análise completa, verificar todo o histórico da criança e avaliar a dinâmica familiar. Levantado o diagnóstico, o tratamento precisa ser personalizado e requer algumas vezes o envolvimento de vários profissionais de saúde, como o gastroenterologista, o nutricionista, o fonoaudiólogo e o psicólogo.
Revista News — Existe alguma dica ou orientação de como lidar com o problema?
Dr. Mário C. Vieira — Paciência, amor e buscar orientação médica. Lançar mão de algumas estratégias para despertar o interesse dos pequenos pela comida pode acalmar os ânimos à mesa, como:
• Adotar uma atitude neutra diante das rejeições e do mau comportamento à mesa;
• Criar uma alimentação que incentive o apetite (vale apostar em pratos bem coloridos, com comidas enfeitadas);
• Limitar a duração das refeições;
• Oferecer alimentos adequados a cada idade;
•Introduzir novos alimentos sistematicamente;
• Incentivar alimentação independente;
• Tolerar, com moderação, a bagunça com a comida, apropriada para a idade;
• Oferecer frutas, verduras e legumes em todas as refeições;
• Oferecer os mesmos alimentos com diferentes apresentações/texturas (cozido, frito, assado etc);
• Diminuir a preparação das “comidas favoritas”;
• Sentar a criança à mesa com os outros membros da família;
• Para aquelas crianças que bebem muito leite, diminuir o volume e a frequência;
• Limitar o consumo de líquido durante a refeição. Água e suco devem ser oferecidos durante a refeição com cuidado;
• Respeitar períodos de pouco apetite e preferências alimentares;
• Oferecer pequenas quantidades de comida para não desencorajar a criança a comer;
• Listar as preferências da criança e, toda semana, acrescentar dois tipos diferentes de comida com textura semelhante ao grupo original.