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Histórias de Libertadores: Quando Pato ganhou no grito

Eduardo Galeano, histórico escritor uruguaio, costumava afirmar que o Roberto ‘Pato’ Abbondanzierise trata da única religião desprovida de ateus. Embora seja impossível comprovar se ele estava certo, é fato que toda a torcida colorada viu em Abbondanzieri uma figura divina naquela noite de onze de março, em Quito

Roberto ‘Pato’ Abbondanzieri foi apresentado como reforço colorado em dezoito de fevereiro de 2010. No momento de seu anúncio, o Site do Inter o definia como um “goleiro multicampeão”, ressaltando a importância de contar com um jogador tão experiente para a disputa da Libertadores que se avizinhava. O impacto de sua contratação foi imediato, com jornais de todo o continente destacando o potencial de liderança que o arqueiro poderia exercer no grupo junto aos hermanos companheiros, D’Alessandro e Guiñazú.

Pato estreou pelo Inter na primeira partida do Clube do Povo na Libertadores daquele ano, contra o Emelec, no Beira-Rio. Após a vitória por 2 a 1, o goleiro elogiou a recepção que teve da torcida e prometeu se preparar ainda mais para os próximos jogos. No entanto, nem o mais otimista torcedor – ou o mais criativo literato – poderia imaginar o que estava por vir.

O adversário colorado na segunda rodada da fase de grupos do torneio continental foi o Deportivo Quito. A partida aconteceu na capital equatoriana, cidade localizada a cerca de 2.850 metros acima do nível do mar. Para além do tradicional problema de falta de ar para os atletas, Abbondanzieri entrou em campo sabendo que o jogo lhe reservava obstáculos específicos, relacionados principalmente à velocidade da bola, que tem trajetória mais rápida e incerta em partidas disputadas na altitude.

Após um início truncado e tenso, o jogo ganhou contornos dramáticos quando, aos trinta minutos da primeira etapa, Pato sofreu um estiramento no ligamento do tornozelo direito. Para piorar, três minutos depois o Deportivo abriu o placar com gol de Minda. Contudo, o Colorado gaúcho não se abateu com o cenário negativo e devolveu a igualdade ao marcador logo na sequência com Giuliano, completando passe de Edu. O primeiro tempo chegava ao fim, e junto com ele a Maior e Melhor Torcida do Rio Grande se perguntava se o goleiro argentino conseguiria retornar a campo para a segunda etapa.

Abbondanzieri voltou, e foi então que teve início a grande história da partida. Aos sete minutos e vinte segundos do segundo tempo, Pirchio, atacante do time equatoriano, foi lançado na área colorada. Porém, a bola veio com muita força, e seria defendida por Pato, não fosse o atropelo que o arqueiro sofreu do atleta adversário. Com força extremamente desproporcional, talvez por estar visando a debilitar ainda mais o já lesionado goleiro, Pirchio não só empurrou Abbondanzieri para longe, como também, ao levantar perigosamente sua perna, arrancou a bola das mãos do camisa vinte e cinco do Inter. Para todos no estádio, o lance parecia bastante simples: falta do atacante do Deportivo, que deveria ser advertido, no mínimo, com cartão amarelo. No entanto, José Buitrago, árbitro do jogo, não pensou dessa forma, e assinalou pênalti para a equipe da casa.

Indignados e surpresos, os jogadores colorados correram na direção do juíz, formando um bolo em torno de Buitrago. Ao mesmo tempo, Bruno Silva e Jorge Fossati reclamavam com o assistente que estava mais próximo do lance, Wilson Berrío, que, assim como seu companheiro de arbitragem, em um primeiro momento pareceu não dar ouvidos aos atletas. Até que Abbondanzieri apareceu.

Esbanjando experiência, ao perceber que Berrío não concordava com a marcação da penalidade, o goleiro conseguiu convencer o bandeirinha a conversar com o árbitro. Mais do que isso, demonstrando respeito à figura do homem do apito, no momento em que os dois se reuniram Pato tratou de garantir que pudessem debater com privacidade, afastando-os de seus companheiros que seguiam protestando. A esta altura, os milhões de colorados e coloradas espalhados pelo mundo já tinham em Abbondanzieri um herói. Todavia, como se fosse um grande escritor, o arqueiro soube se agigantar ainda mais no capítulo final.

Ao perceber que Buitrago ficara hesitante, Pato não titubeou em retornar correndo até a pequena área colorada e posicionar a bola para que o jogo fosse reiniciado. Tamanha certeza pareceu contagiar o árbitro, que, acompanhando o goleiro, anulou o pênalti e apontou bola ao chão, com posse para a equipe gaúcha. Os equatorianos até tentaram protestar, mas a decisão já estava tomada, e logo Sorondo deu reinício à partida, que terminou empatada em 1 a 1 – resultado que passou diretamente não só pelo grito, mas também pelas mãos do camisa vinte e cinco colorado, que fez uma série de grandes defesas nos minutos finais do jogo.

Daqui a alguns anos, os menos românticos poderiam questionar o feito de Abbondanzieri. Afinal de contas, não existiram os que duvidavam que um povo seria capaz de erguer o maior estádio particular do Brasil sobre as águas de um rio? Certamente estes mesmos fascinados pela objetividade discorreriam que, na verdade, Pato nada fez, e que o trio de arbitragem tomou a decisão por si só, em seus fones de ouvido e rádios eletrônicos. Para estes, não existe melhor resposta do que as palavras do árbitro da partida.

Em entrevista concedida para o jornal Zero Hora no dia seguinte ao jogo de Quito, quando questionado se Abbondanzieri teria sido importante na reversão da penalidade, José Buitrago reconheceu: “Sim, (Abbondanzieri) foi de alto nível e sua experiência ajudou. Ele insistiu: ‘consulta, consulta, consulta o assistente’. Então, decidi ouvir o assistente para ter o panorama do lance”. Assim fica comprovada a história, perpetuada, junto do precioso ponto conquistado, na conquista do bicampeonato da América.

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