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Estado brasileiro tem legitimidade para a restrição do direito de circulação

Diante da pandemia do COVID-19, é imperioso refletir sobre quem controla o direito de ir e vir dos cidadãos.

Segundo o artigo 5º, inciso XV, da Constituição Federal “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

Assim, em regra, o Estado não pode limitar o direito de locomoção dos cidadãos, salvo em tempo de guerra.

Mas, e a saúde pública? Será que, durante a pandemia que nos atinge, está a sociedade brasileira sendo vítima de leis arbitrárias e infundadas, que restringem o direito de locomoção?

A respeito da regulamentação do direito de locomoção, o Ministro Alexandre de Moraes, em sua obra Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional (p. 258, 2006, Atlas), lembra que o referido artigo da Constituição Federal foi regulamentado por meio do Decreto nº 678 de 1992 que promulgou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

Desta forma, de modo mais específico do que a própria Constituição Federal, o direito de circulação é tratado no artigo 22 da Convenção Americana de Direitos Humanos, com quatro regras básicas:

1. Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir conformidade com as disposições legais.

2.Toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio

3.O exercício dos direitos acima mencionados não pode ser restringido senão em virtude de lei, na medida indispensável, numa sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas.

4.O exercício dos direitos reconhecidos no inciso 1 pode também ser restringido pela lei, em zonas determinadas, por motivos de interesse público.

Desta forma, analisando especificamente o item 3 do artigo 22, percebe-se que o direito de circulação pode ser restringido numa sociedade democrática para proteger a saúde pública.

É este, pois, o caso que estamos vivenciando. A restrição do direito de circulação para prevenir a saúde pública, comprovadamente atacada pelo novo coronavírus (COVID-19), tem, pleno fundamento legal.

O Poder Público tem, portanto, legitimidade para restringir o direito de locomoção dos cidadãos e, para tanto, tratou de publicar a Lei Federal n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece diversas medidas para o enfrentamento do COVID-19.

É por meio da referida lei que o cidadão poderá se orientar a respeito do que pode, ou não, ser feito durante o surto do COVID-19.

Muito interessante notar que a predita lei definiu termos que jamais foram tão repetidos pela mídia e por todos os cidadãos em geral, quais sejam, “isolamento” e “quarentena”.

Com efeito, “isolamento”, significa a “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus” (art. 2º, da Lei 13.979/2020).

De modo a deixar termo “isolamento” ainda mais claro, vale citar a Portaria nº 356/2020, do Ministério da Saúde, que estabelece em seu artigo 3º que “a medida de isolamento objetiva a separação de pessoas sintomáticas ou assintomáticas, em investigação clínica e laboratorial, de maneira a evitar a propagação da infecção e transmissão local”.

Já o termo “quarentena”, por sua vez, significa a “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou propagação do vírus” (art. 2º, da Lei 13.979/2020).

Complementando a ideia de “quarentena”, o artigo 4º, da aludida Portaria do Ministério Saúde, determina que a medida “tem como objetivo garantir a manutenção dos serviços de saúde em local certo e determinado.”

Assim, uma vez definidos e esclarecidos os termos acima, foram definidas, também, inúmeras medidas compulsórias que o Estado poderá tomar com o objetivo de enfrentar o COVID-19, dentre as quais, além do isolamento e quarentena, há, ainda, a realização de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas, tratamentos médicos específicos, estudo ou investigação epidemiológica, exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver.

Isso mesmo. De acordo com o artigo 3º da predita Lei, o Estado pode realizar tudo isso de modo compulsório, ou seja, usando a sua força.

O Estado ainda pode, nos termos do referido artigo, restringir, por rodovias, portos e aeroportos, a entrada e saída de pessoas e bens no País, locomoção interestadual e intermunicipal, bem como requisitar bens e serviços de pessoas e empresas, mediante indenização a ser paga posteriormente, dentre tantas outras medidas.

Para regulamentar a Lei 13.979 de 2020, foi editado o decreto 10.282, de 20 de março de 2020, que especificou quais são as atividades essenciais que devem continuar em funcionamento, uma vez que a estrutura do Estado e da própria sociedade contempla atividades que não podem parar, sob pena de um colapso, como, por exemplo, telecomunicações, internet, segurança, tratamento de água, iluminação pública, captação de tratamento de esgoto e lixo, dentre outras.

Para complementar essa lista, foi ainda editado o decreto 10.292, de 25 de março de 2020, que contemplou atividades antes não imaginadas como essenciais, como por exemplo, “comercialização de embalagens”.

No estado de São Paulo, houve a regulamentação da quarentena por meio do Decreto 64.879/2020. O referido decreto também impõe a proibição de atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais, shopping centers, casas noturnas e academias. Além disso, proibiu-se o consumo local em bares, em restaurantes, padarias, supermercados, sem prejuízo do serviço de entregas e drive thru.

Especificamente na cidade de São Paulo, o decreto 59.268, de 23 de março de 2020, regulamenta a Lei Federal n. 13.979/2020 (lei de enfrentamento ao COVID-19), sendo expresso quanto ao dever de “os estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços manter fechados os acessos do público ao seu interior”, ressalvando o serviço de entrega.

Como se vê, inúmeras são as restrições, devendo o cidadão respeitá-las, sob pena de responsabilização nos termos da lei (conforme §4, do art. 3º, da Lei 13.979/2020).

Mas, que tipo de responsabilização?

De acordo com o decreto 59.268/2020 de São Paulo, o estabelecimento que descumprir a quarentena poderá ser interditado e multado. Pelo que se verifica da Lei 16.402/16, “os valores das multas (de 2 a 8 mil reais) aplicam-se a cada 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) ou fração de área edificada ocupada pelo estabelecimento ou local de trabalho”.

Além disso, o cidadão que descumprir a quarentena legalmente determinada pela Administração Pública poderá ser responsabilizado criminalmente, nos termos dos artigos 268 e/ou 330, do Código Penal.

O mencionado artigo 268 define o delito de “infração de medida sanitária preventiva”, ou seja, pune aquele que “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. Está sendo punida, basicamente, a conduta daquele que, deliberadamente, desrespeita os decretos, leis e provimentos editados pela Administração Pública. Trata-se de crime de pequeno potencial ofensivo, cuja pena pode variar de um mês até um ano de detenção, além de multa.

A pena é aumentada caso a infringência seja cometida por funcionário da saúde pública ou por médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro, uma vez que tais profissionais têm a obrigação de evitar a propagação de doenças contagiosas, pelo próprio dever inerente às suas respectivas funções.

Já o crime de desobediência (art. 330, do C.P.) se refere à conduta daquele que “desobedecer a ordem legal de funcionário público”, sendo certo que a pena pode variar de 15 dias a seis meses de detenção e multa.

Por todo o exposto, recomenda-se o estrito cumprimento das determinações públicas. Não bastasse a questão sanitária em torno da pandemia do COVID-19, é certo, ainda, que, nesses tempos difíceis, ninguém deseja qualquer outro tipo de problema, tampouco multas ou vir a ser processado criminalmente.

*Este artigo contou com a colaboração dos advogados Dr. Gabriel Tyles, Dr. Euro Bento Filho, Dr. Henrique Matos e do Dr. Pedro Henrique Brocoletti, que atuam no escritório Euro Maciel Filho e Tyles – Sociedade de Advogados. www.eurofilho.adv.br

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