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Mitos e verdades sobre a surdez canina

Na sexta-feira, dia 30 de setembro, a comunidade surda de todo o mundo comemora o Dia Internacional do Surdo. Aqui no Brasil, o Dia Nacional do Surdo é comemorado hoje, dia 26. Duas datas que motivaram a criação do Setembro Azul – Mês da Visibilidade da Comunidade Surda, com o objetivo de dar visibilidade à comunidade surda, suas lutas e conquistas.

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Embora a data refira-se apenas a pessoas surdas, este é um bom momento para dar visibilidade também à surdez canina, já que o número de tutores que enfrentam desafios com esses cães cresce a cada dia. Famílias que resolvem realizar o sonho de ter um filhote de raça pura ou aquelas que decidem adotar ou resgatar um filhote, acabam enfrentando uma mistura de frustração, desamparo, medo e desespero, quando descobrem que o seu cão não escuta.

Carolina e Milka, seu cão surdo – Foto: Divulgação

Mas afinal, um cão surdo é diferente de um cão que escuta? Em que sentido? Ele aprende da mesma forma? Precisa de um atendimento especializado? Precisa de uma comunicação diferente? O que implica, na prática, conviver diariamente com um cão surdo e no que isso se difere de viver com um cão que escuta?

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A psicóloga especialista em Comportamento Animal, Carolina Jardim, conta que responder todas essas perguntas daria um livro. “Existem muitos mitos sobre o assunto, mas é possível elencar alguns pontos principais que podem ajudar tutores de cães nascidos surdos”, diz Carolina. Ela estuda, trabalha e convive com cães surdos há 13 anos e, com base nessa experiência preparou esta relação com os sete principais mitos e verdades sobre a surdez canina.

7 mitos e verdades sobre a surdez canina

  • “Se ele não escuta, ele não vai entender o que eu falo.”

Todos os cães têm mais facilidade para ler nossa postura corporal e gestual do que entender palavras. Você só precisa se treinar para colocar toda a sua “fala” no seu corpo. Se você quer que seu cão faça algo, evite falar com ele, porque não é justo usar uma língua que ele não entenda! Coloque toda a força da sua comunicação em gestos, postura corporal e até mesmo na sua expressão facial. Não há limites para o número de sinais que um cão surdo pode aprender. Se quiser saber mais sobre isso, dá uma lida no meu artigo em que conto um pouco do trabalho que faço com leitura labial com cães surdos.

  • “Por não escutar, ele não vai conseguir se comunicar com outros cachorros”

Esse é um mito muito recorrente. E o fato é que aqui, mais uma vez, a linguagem corporal vai ser a principal via de comunicação. E nisso os cães surdos não perdem nada para cães ouvintes! Eles são incríveis em demonstrar sinais de quando estão desconfortáveis, com medo ou felizes. E também conseguem ler a postura corporal dos outros cães com muita facilidade. Mesmo quando outro cão está rosnando para um cão surdo, apesar de não escutar o rosnado, ele consegue perceber que o lábio do outro cão está tenso, o olhar mais fixo e a postura corporal também. Nunca tive nenhum relato de um cão surdo tomar uma mordida por não ter entendido o sinal de outro cão. Isso, de fato, não é algo para nos preocuparmos!

  • “Meu cão surdo fica agressivo quando acorda.”

Essa é uma das maiores queixas de tutores de cães surdos. É importante aprendermos a nos colocar no lugar do cachorro. Um cão que escuta, quando dorme, perde apenas a visão. Já um cão surdo, perde dois sentidos! Imagine você só descobrir que alguém está perto de você quando essa pessoa te toca? Parece aterrorizador, não? Nesse sentido, não é raro um cão surdo, ao ser acordado, se assustar e atacar seus tutores, ou até mesmo o outro cachorro da casa. Um jeito de prevenir isso é acordá-lo pelo olfato (com uma comida bem cheirosa) ou também se acostumar a tocar sempre no mesmo lugar do seu corpo – eu sempre toco no ombro – de maneira bem suave, como um carinho. Dessa forma, mesmo que ele se assuste, vai se “lembrar” que é você e que está tudo bem.

  • “Meu cão surdo não pode passear solto.”

Antes de qualquer coisa, passear com um cão solto não é uma boa ideia. A segurança precisa sempre estar em primeiro lugar. Vir quando você chama não significa que seu cachorro virá se um gato cruzar seu caminho, uma moto ou até mesmo outro cachorro. Se o cão for surdo, o desafio ainda é maior, pois precisam de contato visual ou do toque para virem quando chamados. Muitas pessoas usam colares eletrônicos, no estímulo de vibração (nunca no estímulo eletrônico!!) para associar ao vem, quando o cão está longe. Essa é uma opção para tutores muito dedicados e cuidadosos, pois, por serem mais sensíveis, mesmo na vibração, o cão pode associar com algo negativo e vir até você por medo, e não por associar a algo bom. E isso é muito ruim para a relação do cão surdo com você. Nunca use ferramentas que irão ameaçar a confiança dele em você! Nesse caso, é melhor soltá-lo apenas em áreas cercadas ou utilizar guias longas.

  • “É verdade que por ser surdo, o cachorro desenvolve mais os outros sentidos?”

Eu queria poder responder essa pergunta com toda a certeza, mas, infelizmente, não há pesquisas que comprovem isso. Pela minha experiência com cães surdos – e também se fizermos um paralelo com pessoas surdas – é isso mesmo! Cães surdos parecem ter o olfato ainda mais desenvolvido do que cães ouvintes. A visão, sem dúvida, é o sentido que eles mais usam para se comunicar conosco. Eles são muito atentos a tudo o que acontece ao seu redor e se guiam pela movimentação de outros cães e das pessoas. O tato é um sentido que, via de regra, cães surdos costumam ter bastante sensibilidade. Por isso, é bem importante que você acostume seu cão surdo a ser tocado, manipulado e simule possíveis procedimentos que ele terá que passar, como limpeza de ouvido, corte de unhas, exames clínicos. Dessa forma, você irá prevenir problemas futuros de medo ou até de agressividade.

  • “Cães surdos têm mais problemas comportamentais.”

Eu adoraria dizer que não. Mas, na realidade, essa é uma questão complexa. Dos mais de 60 cães surdos que já atendemos em todo o mundo, 40% demonstram algum tipo de comportamento compulsivo, como correr atrás do rabo, lambedura excessiva ou, principalmente, perseguir sombras e luzes – que é o caso do meu Dálmata, o Milka. Muita gente acha que eles são mais ansiosos ou até agressivos e, segundo alguns estudos, isso é um mito. Quando comparados a cães normais sensorialmente, cães com deficiência (surdos / cegos e surdos / cegos) não demonstram, de modo geral, maior agressividade ou maior ansiedade. Por outro lado, parecem ter uma tendência maior para compulsão e latidos excessivos. Quem pensa que por ser surdo, o cão não vai latir, está muito enganado!

  • “Ter um cão surdo não é pra qualquer pessoa.”

Infelizmente, o número de cães surdos abandonados ou em abrigos é muito grande e eu adoraria poder dizer para qualquer pessoa que queira adotar um cão, para escolher um cão surdo. Mas, de verdade, cães surdos exigem mais da gente. É preciso uma maior dedicação para conhecer sobre comportamento e sobre treinamento; ajustar sua forma de se comunicar – ainda mais se você tem outro cão que escuta; fazer um bom manejo do ambiente para garantir a segurança dele; cuidar para que a rotina satisfaça suas necessidades – que muitas vezes são mais específicas do que a de um cão ouvinte; alinhar toda a família para que todos “falem a mesma língua” e, assim como com qualquer cão, ter disposição para abrir mão de broncas e de uma educação baseada em ameaças, medo e força.

Fonte
Lucia Guimarães
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