ColaboradoresOpiniãoVale do Sinos

Unanimidade Suspeita: O Milagre que Une Oposição e Situação em São Leopoldo 

Por João Darzone – advogado e Presidente do Observatório Social de São Leopoldo 

Em um movimento que escancara o desprezo pelos princípios constitucionais mais básicos, a Câmara Municipal de São Leopoldo aprovou recentemente o Projeto de Lei 37/2025, proposto pela Mesa Diretora, que concede reajuste de 5,48% nos subsídios dos próprios vereadores, com efeitos retroativos a abril de 2025. 

O Projeto de Lei 37/2025, segundo seus defensores, visa meramente “ajustar os subsídios dos vereadores conforme a inflação acumulada” e “manter o poder de compra dos parlamentares em relação ao aumento de preços, seguindo o índice concedido aos servidores municipais, em cumprimento ao art. 37, X da Constituição Federal”. A iniciativa, afirmam, “procura garantir equilíbrio financeiro e justiça aos representantes municipais”. 

Publicidade

Esta narrativa, contudo, representa uma tentativa de dourar a pílula de uma inconstitucionalidade flagrante. A retórica de “equilíbrio financeiro” e “justiça” não pode servir de escudo para violar princípios constitucionais fundamentais. Por trás do discurso aparentemente razoável, esconde-se uma manobra que afronta diretamente o princípio da anterioridade legislativa e a moralidade administrativa. 

A regra constitucional é clara e não comporta exceções: VEREADORES RECEBEM AUMENTO UMA ÚNICA VEZ, DE UMA LEGISLATURA PARA A SUBSEQUENTE. Esta prática abjeta praticada pela Câmara Municipal de São Leopoldo não é novidade, mas sim um comportamento recorrente que, lamentavelmente, também contaminou os novos vereadores. 

Prova disso é que em setembro de 2024, a mesma Câmara já havia votado aumento para a legislatura 2025/2028, através da Lei nº 10.161, de 19 de setembro de 2024, que “dispõe sobre a fixação dos subsídios dos Vereadores para a legislatura 2025/2028”.  

Nesta lei de 2024, o subsídio foi mantido no valor de R$ 10.403,58, e, de forma ainda mais grave, já previa em seu artigo 4º que “o valor do subsídio fixado no art. 2º e no art. 3º será objeto de revisão geral anual, por meio de Lei específica, na mesma data e no mesmo índice em que for procedida a revisão geral da remuneração dos servidores públicos municipais.” 

Ou seja, a Câmara não apenas fixou os subsídios para a próxima legislatura, como já planejou, de antemão, um mecanismo para burlá-los durante o mandato, em flagrante violação ao princípio constitucional da anterioridade. 

O mais revelador – e talvez irônico – aspecto deste episódio é que, quando se trata do próprio bolso, as tradicionais divisões entre situação e oposição simplesmente desaparecem. O projeto foi aprovado por unanimidade e em regime de urgência, evidenciando que, quando o assunto é benefício próprio, as divergências ideológicas e partidárias são prontamente deixadas de lado. 

Esta unanimidade expõe o verdadeiro caráter da medida: não se trata de uma questão de justiça ou equilíbrio financeiro, mas de interesse pessoal compartilhado por todos os edis. A pressa na aprovação, materializada no regime de urgência, apenas confirma a intenção de garantir o benefício antes que qualquer obstáculo jurídico possa surgir. 

Tanto os militantes fanáticos de esquerda quanto os autoproclamados conservadores-liberais “do bem” de São Leopoldo não devem se enganar com relação a paixões por vereador A ou B. Como diria Nelson Rodrigues: “Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem.” Quando o assunto é o próprio bolso, as máscaras caem e as ideologias se revelam mera retórica vazia. 

O que vemos em São Leopoldo é um exemplo cristalino daquilo que a Constituição Federal buscou evitar ao estabelecer o princípio da anterioridade legislativa. Ao aprovar um aumento para si mesmos, aplicável na própria legislatura, os vereadores incorrem em flagrante conflito de interesses, transformando o mandato representativo em instrumento de benefício pessoal. 

A tentativa de mascarar o aumento como mera “recomposição inflacionária” não resiste ao mais superficial escrutínio jurídico. O Supremo Tribunal Federal já pacificou entendimento de que, independentemente da nomenclatura utilizada, qualquer alteração nos subsídios de agentes políticos – seja fixação inicial ou reajuste – deve observar o princípio da anterioridade. 

É particularmente alarmante que a nova legislatura (2025-2027) ignore preceitos já há muito consolidados pelo Supremo Tribunal Federal. Em julgamento emblemático (RE 725663), o ex-Ministro Ricardo Lewandowski foi categórico ao afirmar que leis municipais que majoram subsídios de vereadores durante a legislatura, “valendo-se de percentuais de regime estranho (servidores municipais) que não lhes é aplicável, e de processo legislativo inadequado”, afrontam nitidamente o princípio do art. 29, VI, e os arts. 2º, 37, X, XIII, XV, e 39, § 4º da Constituição Federal. 

Este entendimento não é isolado, sendo reiterado em diversos outros julgados de ambas as Turmas da Suprema Corte, como nos recursos RE 229.122-AgR/RS, RE 458.413-AgR/RS, AI 843.758-AgR/RS, RE 484.307-AgR/PR e AI 776.230-AgR/PR. A jurisprudência é tão pacífica que muitas dessas decisões sequer precisaram ser levadas ao colegiado, sendo resolvidas monocraticamente. 

Ao ignorar este consolidado entendimento jurisprudencial, os vereadores de São Leopoldo não apenas demonstram desconhecimento do direito constitucional brasileiro, mas também revelam um preocupante desrespeito as leis vigentes no país e as próprias decisões judiciais. 

O projeto aprovado busca amparo no artigo 37, X, da Constituição Federal, dispositivo que trata da revisão geral anual para servidores públicos. Contudo, esta é uma interpretação conveniente e distorcida do texto constitucional.  

Os agentes políticos não são servidores públicos comuns – possuem regime jurídico próprio, justamente para impedir que possam manipular suas próprias remunerações.  

Ao confundir deliberadamente esses conceitos, os vereadores de São Leopoldo demonstram ou profundo desconhecimento do ordenamento jurídico brasileiro – hipótese preocupante para legisladores – ou, pior ainda, tentativa consciente de burlar as limitações constitucionais. 

Em um contexto onde a população enfrenta dificuldades econômicas e os serviços públicos clamam por recursos, é moralmente indefensável que os representantes do povo priorizem o aumento de seus próprios ganhos. A retroatividade prevista no Projeto de Lei 37/2025 agrava ainda mais a situação, evidenciando a pressa em garantir vantagens financeiras antes que eventual controle judicial possa impedi-las. 

Este comportamento mina a confiança da sociedade nas instituições democráticas e reforça a percepção de que a política se tornou um meio de enriquecimento pessoal, e não de serviço público. A alegação de buscar “justiça aos representantes municipais” soa particularmente ofensiva quando contrastada com as dificuldades enfrentadas pela população que esses mesmos representantes deveriam servir. 

Diante da flagrante inconstitucionalidade, resta ao Ministério Público e aos órgãos de controle provocar o Poder Judiciário para invalidar este ato normativo que afronta princípios basilares da República. A sociedade não pode tolerar que aqueles eleitos para representar o povo utilizem seu poder para benefício próprio, em clara violação às regras do jogo democrático. 

Importante destacar também que são legitimados para questionar o aumento inconstitucional autoconcedido pelos vereadores, conforme o artigo 95, parágrafo 2º, inciso X, “associações de bairro e entidades de defesa dos interesses comunitários legalmente constituídas há mais de um ano” 

Esta previsão amplia significativamente o rol de atores sociais capazes de exercer o controle de constitucionalidade, permitindo que a própria sociedade civil organizada atue diretamente na defesa da moralidade administrativa e da ordem constitucional. 

O episódio de São Leopoldo não é caso isolado no cenário político brasileiro, mas exemplifica um padrão preocupante de comportamento que precisa ser firmemente combatido. A moralidade administrativa não é mera recomendação ética – é imperativo constitucional que vincula todos os poderes públicos e cuja violação compromete a própria legitimidade das instituições democráticas. 

A mensagem que fica é clara: não há espaço, em nosso ordenamento jurídico, para que representantes eleitos legislem em causa própria. O princípio da anterioridade existe precisamente para impedir esse tipo de abuso, e sua observância não é opcional – é requisito de validade dos atos normativos que tratam da remuneração de agentes políticos. 

Neste caso de São Leopoldo, a unanimidade que uniu vereadores de todos os espectros políticos em torno do aumento de seus próprios subsídios nos faz lembrar outra máxima de Nelson Rodrigues: “Toda coerência é, no mínimo, suspeita.” 

E de fato, quando políticos tradicionalmente adversários mostram-se tão coerentes e unidos em torno de uma causa, é no próprio bolso que encontramos a explicação para tal milagre de consenso. 

Botão Voltar ao topo