Beira-Rio, um sonho Gigante

A construção da casa dos colorados

Registro algum, até o dia de hoje, foi capaz de determinar com exatidão o momento em que surgiu a ideia de erguer o Beira-Rio. No entanto, é possível afirmar que o pontapé inicial na história da construção do Gigante foi dado no dia 12 de setembro de 1956. Nesta data, o vereador Ephraim Pinheiro Cabral, que até então já havia presidido o Inter entre 1951 e 1952, apresentou na Câmara de Porto Alegre projeto para a doação de uma área de oito hectares para o Clube do Povo, visando à edificação de um novo estádio para o Colorado. Existia, contudo, um porém: o terreno ficava dentro do Rio Guaíba. Portanto, caso a proposição fosse aprovada, seria necessário aterrar a região antes de dar início às obras.

No momento de sua diplomação para o legislativo municipal, Ephraim discursou prometendo lutar pela expansão do Estádio dos Eucaliptos, processo que afetaria a Rua Barão Cerro Largo, e, por isso, enfrentava grande resistência na comunidade portoalegrense. Entretanto, o passar dos meses convenceu o vereador de que, embora fosse um estádio histórico, eternizado no coração da torcida vermelha, os Eucaliptos não seriam capazes de suportar gigantismo do Inter por mais muito tempo.

Sede de Copa do Mundo, a casa do Rolo Compressor e do Rolinho já se mostrava desgastada pelas intensas décadas vividas junto da torcida vermelha. Logo, uma nova – e imponente – construção parecia a melhor alternativa. Quinze dias após o projeto ser apresentado, veio a aprovação, que demorou mais de um ano para sair do papel.

O aterro começou a virar realidade com a chegada da Draga ‘Ster’, no final de 1957, fato comemorado por dirigentes colorados. O Clube do Povo se preparava agora para construir uma casa sem precedentes na região sul do país. Mesmo assim, houve momento em que as obras demoravam a engrenar, como testemunhou Edson Bergmann, comprador da primeira cadeira cativa do futuro Gigante, em 1961. À época, provocadores afirmavam que ele estava comprando, na verdade, uma Bóia Cativa.

Apesar dos deboches, inclusive em charges nos jornais (foto abaixo), foi também no início da década de 60 que bons ventos começaram a soprar na direção do aterro que surgia sobre o Guaíba. Organizou-se uma comissão de obras, presidida inicialmente por José Pinheiro Borda, português que desembarcou em Porto Alegre no ano de 1929, e logo se apaixonou pelo Inter. Inúmeras vezes presidente do conselho deliberativo do Clube, nome benquisto na sociedade gaúcha por ter conduzido a construção do Hipódromo do Cristal, Borda parecia ser o nome perfeito para chefiar os trabalhos. Todavia, o lusitano recusara o convite para o cargo em mais de uma ocasião, até ceder ao clamor dos companheiros colorados. Uma vez na presidência, declarou que não seria um simples dirigente, prometendo arregaçar as mangas, abaixando-as apenas quando o estádio estivesse pronto.

Ao lado de Borda, na comissão, estavam: Ephraim, como vice-presidente; Manoel Tavares, Eraldo Hermann e José Asmus, responsáveis pelas compras de materiais; Arno Larsen, Paulo Reginato e Jader de Souza, na tesouraria; Aldo Dias Rosa e Hugo Martins Martinez, na contabilidade; além de Rui Tedesco e Thompson Flores, na parte técnica das obras. O grupo deu ritmo aos trabalhos no Gigante, conseguindo, junto à prefeitura, novas máquinas para agilizar os serviços. Ademais, também fez questão de apelar para a torcida, sabendo que não existia força maior para dar prosseguimento aos avanços na construção do estádio do que a mobilização da Maior e Melhor Torcida do Rio Grande. Campanhas por rádio conclamavam colorados e coloradas de todo o estado a doar materiais como tijolos, cimento e ferro. Neste sentido, visando a estimular o público, foi lançada a maquete do novo estádio no dia 6 de outubro de 1962.

Passados alguns meses da divulgação da maquete, foi inaugurada a pedra fundamental da construção do Gigante. Em celebração, realizou-se um cerimonial, que contou com presença maciça da torcida colorada, e teve como ponto alto a missa comandada pelo bispo Dom Edmundo Kuntz, conselheiro do Inter na época. Em sua fala, o bispo reforçou o caráter popular que se esperava da casa do Clube do Povo do Rio Grande do Sul: “Aqui todos serão iguais, sem diferenças ideológicas, políticas, religiosas, sociais – todos serão irmãos”.

A partir da cerimônia, o terreno passou a conviver com um fluxo cada vez maior de operários, máquinas e materiais, transformando o antigo rio em um verdadeiro canteiro de obras. Os túneis começavam a surgir, sendo logo sucedidos pelas estruturas das arquibancadas. O ritmo intenso empolgava ainda mais a torcida, alavancando as vendas de títulos de arrecadação de fundos para a construção, que após totalizarem dois mil no primeiro ano de comercialização, rapidamente atingiram a casa dos 40 mil. O apoio era tamanho que, certa feita, em entrevista à Zero Hora, Borda admitiu não ter noção das dimensões do clube que dirigia, de tão grande que era.

A euforia da torcida colorada não se resumia a uma simples expectativa pelo novo estádio. Além disto, esperava-se que, inaugurado o Gigante, os resultados dentro de campo voltassem a aparecer, visto que depois de conquistar treze títulos gaúchos em dezesseis anos, entre 1940 e 1955, o clube vinha amargando uma sequência negativa, tendo conquistado a taça do campeonato estadual apenas uma vez, em 1961. Cansados das derrotas do time nos Eucaliptos, os torcedores se dirigiam às obras da nova casa em busca de conforto. “A gente torcia por pedreiros” lembram os colorados e coloradas daquele tempo.

Todo o frenesi, contudo, precisou ser contido em 1965. Contrastando com o otimismo do início da década, o ano ficou marcado na história do Inter por dois grandes e duros baques. Conduzida com recursos próprios, as obras para a construção do Gigante tiveram de ser paralisadas, reflexo das debilitadas finanças do clube. Os trabalhos só foram reiniciados graças à ajuda do Banco da Província, conquistada a partir da Comissão de Obras. Comissão, esta, que sofreu inestimável perda para a torcida colorada.

Em uma infeliz ironia do destino, José Pinheiro Borda faleceu no dia 25 de abril, pouco tempo depois de conceder entrevista na qual declarara que, por não ser um grave pecador, pedia a Deus o “privilégio de ver construído o Gigante da Beira-Rio”. Sua perda foi sentida por toda a cidade, dando início a um movimento dentro da sociedade portoalegrense para que o Gigante que se erguia na margens do rio recebesse o nome do português.

Em 1965, com a morte de José Pinheiro Borda, decidiu-se por dar ao estádio o nome do dirigente. Ao mesmo tempo, o apelido de Gigante da Beira-Rio, usado em larga escala ao longo dos treze anos de imbróglios e obras, não caiu no esquecimento, já estando consagrado dentro da população gaúcha.

Unanimidade no meio vermelho era o fato de não existir melhor maneira de honrar a memória do antigo líder do que retomando a dedicação de corpo e alma às obras. Ruy Tedesco, novo presidente da comissão, logo disponibilizou para vendas um lote de cadeiras perpétuas, cada uma ao preço de um milhão de cruzeiros, valor que injetou ânimo nos cofres colorados. Não havia dúvidas: o Gigante era para já!

A torcida seguiu na figura de protagonista em 1967, quando o pedido por donativos foi intensificado. Neste sentido, destaca-se a Campanha do Tijolo, lançada no dia 26 de novembro, em partida entre Inter e Farroupilha, nos Eucaliptos. Na ocasião, além da presença dos jogadores do atual elenco, que entraram em campo com uma faixa conclamando à torcida a realizar doações, ídolos do clube, como Tesourinha e Carlitos, abraçaram fortemente o movimento. Um ano depois, o Gigante parecia pronto. Imponente, incorporando em sua arquitetura traços do Estádio Olímpico de Tóquio, e do Azteca, na Cidade do México, a nova casa colorada agora sediava um novo debate – desta vez, quanto ao nome. Gauchão, Eucaliptos, José Pinheiro Borda, Beira-Rio e Panorâmico apareciam como os mais cotados.

Finalizada a maior parte da estrutura, restando apenas alguns acabamentos para a grande inauguração, tiveram início os testes no Gigante. Em março de 1968, por exemplo, o estádio recebeu a decisão do 10º Campeonato Gaúcho de Futebol de Praia, entre Cidreira e um selecionado dos outros times participantes do certame. Quinze mil pessoas prestigiaram o evento, que ainda contou com apresentação da Academia de Samba Praiana no intervalo.

Definida a data de inauguração – um domingo de páscoa, dia 6 de abril -, foram realizados os últimos preparativos para garantir que a festa pudesse transcorrer perfeitamente, a exemplo dos seguidos ensaios realizados em março, que atestaram a eficiência daquele que surgia como o melhor sistema de refletores do país.

Às vésperas da inauguração do Beira-Rio, restava ao Inter se despedir dos Eucaliptos, primeira casa colorada de fato, endereço de alguns dos maiores elencos da história vermelha, responsável por elevar o clube a um patamar de protagonismo nacional. Como não poderia deixar de ser, não era nada fácil para a torcida o rito de passagem de bastão da Silveiro para a beira do Guaíba. Ao mesmo tempo, porém, como já havia passado mais de uma década desde o início da construção do Gigante, a ideia do adeus ao histórico estádio parecia ter sido bem assimilada por grande parte dos colorados e coloradas. Assim, o que poderia ser um momento triste, foi na verdade uma grande festa, quando, no dia 26 de março, Inter e Rio Grande disputaram o amistoso que serviu de capítulo final na história do Estádio dos Eucaliptos.

O resultado da partida, goleada de 4 a 1 para o Inter, serviu para lembrar a todos os presentes das acachapantes vitórias que Tesourinha e Carlitos, Bodinho e Larry, cada dupla ao seu tempo e com seus respectivos companheiros, impuseram aos rivais colorados ao longo das décadas de 40 e 50. O triunfo de 1969, inclusive, contou com a presença de Tesourinha, que atuou nos minutos finais de jogo. Os gols vermelhos foram marcados por Sérgio, Marciano, Gilson Porto e Valdomiro, camisa sete que viria a se consagrar como um dos maiores ídolos da história do Clube do Povo nos anos seguintes.

Certamente, não existiu quem tenha segurado às lágrimas após o último dos apitos. Lágrimas que não eram de tristeza, mas sim nostalgia, e, por que não, felicidade, fruto das memórias de todas as alegrias que o gramado dos Eucaliptos havia proporcionado. Encerrando a noite festiva, Tesourinha retirou as redes de uma das goleiras, em uma despedida pessoal daquele barbante que tanto fez trabalhar quando jogador.

Grandioso e sublime, o Gigante estava pronto para receber mais de 100 mil pessoas no domingo de 06 de abril. Para além da beleza, o Beira-Rio também chamava atenção pela modernidade de suas instalações. Eram 28 cabines de imprensa, quatro delas destinadas à TV, outras quatro à imprensa escrita, e as demais a emissoras de rádio. O acesso ao setor ocorria através de luxuosos elevadores, que também conduziam às tribunas, ou por meio de artísticas escadarias, exclusivas para os profissionais da mídia. Quanto às cabines, inclusive, salienta-se que o novo estádio colorado era o único no mundo a ter uma destas equipada com Telex, sistema que no dia da inauguração transmitiu informações para Londres e Lisboa.

O luxo, diga-se, não era exclusivo aos jornalistas, sendo também compartilhado pelos atletas, que contavam com banheiras térmicas no vestiário, artigo raro nos campos espalhados pelo mundo; e torcedores, que daquele momento em diante teriam o privilégio de acompanhar informações sobre as partidas no exuberante placar eletrônico localizado atrás da goleira sul do Beira-Rio. Assim, à altura da expectativa criada ao longo de treze anos de obras, pronto para exercer papel de destaque a nível nacional e também internacional, honrando o projeto de Ephraim, o trabalho de Borda, o empenho de Tedesco, Herrmann e, principalmente, toda esperança e entrega da torcida vermelha; o Gigante despertou para o domingo de páscoa. Dia em que a capital dos gaúchos acordou muito antes do nascer do sol, já pintada em alvirrubro. Em 6 de abril de 1969, todos foram tirados da cama mais cedo, ainda na – colorada – alvorada.

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